José e Constança foram para Angola ainda pequenos, em 1960, mas com uma diferença de dois meses. Hoje são casados, mas na altura não se conheciam.

Ele era um rapaz do norte, de Vila Pouca de Aguiar, e ela do sul, da vila de Castro Verde. José, mais conhecido por Saraiva, tinha nove anos quando emigra para Angola com os pais, e Constança tinha sete.

Constança e Saraiva
José e Constança créditos: AP

O objetivo dos pais de ambos era o mesmo, melhorar as condições de vida, uma vez que nessa altura, as dificuldades eram muitas.

O regime tinha iniciado uma política de dinamização da economia agrícola colonial através do envio de migrantes portugueses para o interior de Angola, para os chamados Colonatos. “Isto era só válido para casais com filhos, o meu pai tinha seis, o que era uma vantagem  para trabalharem na agricultura lá. Nós fomos para o Colonato da Matala”, recorda Constança. Os pais de Saraiva tinham seis filhos, viviam da agricultura e por isso eram também candidatos perfeitos.

Constança e os irmãos
Constança e os irmãos, no Alentejo, antes de partirem para Angola créditos: DR

José ainda se lembra, como se fosse hoje, o dia em que chegou a Angola. “Foi em setembro de 1960. Chegámos a Moçamedes, levámos vinte dias de barco”. Constança contrapõe “nós levámos 18”.  Saraiva apressa-se a explicar que não vieram no mesmo barco e as rotas eram diferentes, todos partiam da Junqueira, em Lisboa, com destino a Moçamedes, mas faziam paragens diferentes. “Eu vim no Ijo e tu no Niassa”, esclarece.

Constança também tem recordações vivas da viagem. “Lembro-me da minha irmã estar a pescar, porque havia lá uns senhores que pescavam, e nós tínhamos de nos entreter. E também tenho memória da minha mãe, lá em cima no porão, sentava-se e fazia vestidos para a minha boneca, porque ela era costureira”, conta.

Depois da travessia de barco ainda tiveram um dia inteiro de comboio pela frente e mais 25 quilómetros de autocarro até ao colonato da Matala e mais propriamente à aldeia onde ficaram, Freixiel.

Aos colonos era providenciada uma casa com logradouro e estábulos para bovinos e porcos e um armazém para as alfaias. Também tinham direito a um terreno agrícola, em que os hectares variavam consoante o agregado familiar. “Ia dos cinco aos dez hectares”, conta José Saraiva. “E ainda nos deram duas juntas e bois, um porco e uma porca criadeira”, relembra.

Constança acrescenta que as condições habitacionais eram melhores que às que tinham em Portugal. “Tínhamos água canalizada e casa de banho, coisa que no Alentejo não acontecia”; recorda.

“Aquilo era um projeto megalómano. O colonato era constituído por quatro aldeias, com terrenos desbravados, com canais de rega de distribuição geral, depois caleiras de rega individuais para cada terreno agrícola com uma distância de quase 35 quilómetros e terrenos semeados com milho e feijão”, conta Saraiva.

Estima-se que vivessem em Freixiel cerca de cento e cinquenta colonos portugueses, entre beirões, alentejanos, transmontanos, minhotos e madeirenses.

“Eu costumo dizer que sou importada e só se importa o que é bom”

Nazaré tem 68 anos, nasceu em Moçambique, em 1956 e só depois do 25 de Abril de 1974 é que conheceu Portugal, contudo o rótulo que lhe quiseram pôr foi de “retornada.” “Eu nasci lá, portanto eu nunca aceitei esse rótulo,  além da conotação da palavra que estava sempre associada à desgraça, ao coitadinho e à vítima”, conta.

Nazaré
Nazaré Fernandes créditos: AP

A história de Nazaré em Moçambique começa antes mesmo de nascer. Nos anos 50, os pais emigram com o irmão de dois anos para o norte de Moçambique, para uma aldeia no meio do mato. “ O meu pai foi trabalhar na construção dos caminhos-de-ferro na ligação para a Rodésia. Aquilo era mesmo a savana com casas de palhotas”, conta.

Foi ali que Nazaré nasceu, mas com três anos e por influência da mãe, a família mudou-se para Lourenço Marques, hoje Maputo, onde viveram toda a sua vida até saírem para Portugal. Com a sua boa disposição e positivismo inato brinca com a situação. “Eu costumo dizer que sou importada e só se importa o que é bom”, ri-se.

batozado de Nazaré em moçambique
Batizado de Nazaré na aldeia onde nasceu. Na fotografia a pequena Nazaré com os pais e irmão créditos: DR

Lourenço Marques era uma cidade muito pequena onde tudo era perto e a liberdade de brincar na rua marcou a infância de Nazaré. “Recordo-me dos passeios muito largos, com muitas árvores e árvores muito altas.”

Tanto a escola primária como o liceu eram percorridos numa distância a pé, as brincadeiras eram sempre na rua e na praia. Apesar de ter boas recordações deste tempo, Nazaré não gosta de se demorar no passado. “Eu tenho alguma dificuldade em viver de saudosismo”, conta.

Hoje em dia ainda se encontra com colegas do liceu de Lourenço Marques, no encontro anual, não gosta dos discursos revivalistas. “Quando começam com isso eu digo sempre ‘ó meus caros, vocês lá tinham 16 e 17 anos, não tinham nenhuma responsabilidade de vida, quem pagava as contas eram os vossos pais. Portanto, agora a vida é diferente. Se ainda lá estivessem, também tinha de ser diferente”, remata.

Nazaré_convivio de amigos em Lourenço Marques
Nazaré num convívio com amigos, em Lourenço Marques nos anos 60 créditos: DR

“Não sentíamos aquela guerra”

Pouco tempo depois de José e Constança chegarem ao colonato da Matala, a guerra de Angola desencadeia-se. O dia 4 de fevereiro de 1961 marca o início do conflito com o ataque, por parte dos nacionalistas angolanos, a vários estabelecimentos prisionais de Luanda com o objetivo de libertar os presos políticos.

Contudo, já em janeiro, a rebelião das comunidades camponesas do cultivo de algodão na Baixa de Cassanje — região norte — e a resposta armada das forças militares portuguesas, considerados por muitos “o massacre de Baixa Cassanje”, já era indício de que a guerra estava a caminho.

Mas tudo isto acontecia a norte e o casal, na altura ainda muito novo, não se recorda. “Não sentíamos aquela guerra”, conta Constança.

José Saraiva recorda alguns conflitos entre “os brancos mais velhos e os negros" e afima que na sua geração isso não acontecia. "Nós vivíamos naquilo que podemos considerar o cantinho do céu, que era o sul de Angola”, diz. Contudo, esta noção altera-se quando começa a cumprir serviço militar, aos 18 anos.

Aldeia de Freixiel_Colonato da Matala
Aldeia de Freixiel no antigo Colonato da Matala. O campo de futebol onde jogavam à bola e a igreja onde Constança e Saraiva casaram créditos: DR

Com Portugal tinham pouco contacto, sabiam a matéria que estudavam na escola e que era a terra dos pais e familiares. “Eu não me sentia português e a minha relação era nenhuma”, conta José.

Para quem emigrou na altura a ideia era ficar em Angola para sempre. “Para nós, aquilo era nosso. O meu pai veio cá de férias em dezembro de 72 para passar o Natal, nunca imaginou que três anos depois, viria em definitivo. Então, ninguém imaginava vir”, explica.

Constança acrescenta que a família da parte da mãe sempre manteve o contacto, através de carta, e era esse o único elo ao país. “Não havia aquela ligação, nem aquela vontade como agora o imigrante que vem cá todos os anos e depois tem saudades de Portugal.” Longe estavam de imaginar que pouco mais de dez anos depois tudo mudaria.

Constança_ na aldeia de Freixiel
Constança na aldeia de Freixiel créditos: DR

Também em Moçambique, Nazaré tinha o mesmo sentimento. “Eu nunca vinha a Portugal passar férias, porque os meus pais tinham comércio e era impensável fechar durante tanto tempo, mas tinha colegas cujo os pais trabalhavam na função pública e tinham esse hábito, porque conseguiam licenças ou as licenças graciosas em que juntavam de quatro em quatro anos para virem cá passar uns tempos”, conta Nazaré.

Contudo, Nazaré sabia do contexto político que se vivia em Portugal. Os pais tinham vivido e trabalhado em Lisboa, conheciam o peso da censura e a falta de liberdade e procuraram informar os filhos. “O poder falar de tudo em casa, mas não falar com terceiro nem fora de casa eram questões do dia-a-dia em nossa casa”, conta.

O irmão de Nazaré inclusive começou a envolver-se em atividades políticas, tinha Nazaré 14 anos, e lembra-se de ler os mesmos livros do irmão e ouvirem músicas do Zeca Afonso às escondidas. “Ele começou a escrever paro o jornal ‘Voz de Moçambique’, jornal da oposição, e aí houve contacto com a censura e com a vigilância da PIDE/DGS”, recorda.

marginal Lourenço Marques
Marginal de Lourenço Marques num domingo à tarde créditos: DR

Em 1964, também se dá o início da luta armada pela independência de Moçambique com a FRELIMO a liderar essa guerrilha e Portugal reagiu com o reforço de militares. A guerra manteve-se distante das grandes cidades, os conflitos aconteciam maioritariamente na zona de Cabo Delgado e Tete.

“Houve um dia que cheguei a casa e tinha a casa cercada de homens”

 

Com três guerras coloniais a acontecer, o Estado Português enviava cada vez mais militares para as ex-colónias numa altura em que o serviço militar era obrigatório.

Em 1970, já depois de acabar o curso na Escola Agrária, também José Saraiva começa o serviço militar na província de Bié. “Nessa altura comecei a sentir a fragilidade da democracia. E aí é que que eu vejo as atrocidades e as injustiças que se cometiam”, explica.

José Saraiva_ tropa
O jovem José no seu tempo de tropa créditos: DR

Numa das suas vindas à aldeia de Freixiel, durante o serviço militar, começa o namoro com Constança proveniente de um gesto de cavalheiro. “Fomos a um funeral de um colega meu e como aquilo era alto, eu ficava cá fora para dar a mão e o ombro para as pessoas descerem. Esta menina deu-me a mão e deu-se ali um curto-circuito”, ri-se.

Foram oito meses de namoro até casarem, no dia 4 de novembro de 1972 na aldeia onde se tinham conhecido e vivido a vida toda.

No ano seguinte, Saraiva é convidado para integrar um projeto agrícola e o casal mudou-se assim para uma aldeia perto da província de Bié, no centro de Angola. E aí sim começou a sentir a ação da PIDE “em relação ao negro e ao branco que se intrometesse no meio do caminho”, relembra.

Ao contrário dos pais de Nazaré, que sempre falaram do assunto e política era um tema dentro da sua casa, para Constança e o José o tema nunca existiu. “Eu era um jovem completamente ignorante, da vida política, assumo! Não fazia a mínima ideia do que era a PIDE”, confessa.

O jovem, supervisor no desenvolvimento de um projeto agrícola da aldeia, tinha reuniões quinzenais com o governo civil para fazer o ponto da situação e, num desses encontros, de forma inocente denuncia a PIDE.“ Disse-lhes que havia ali uns fulanos que achava que utilizavam o poder excessivo para vingar”, conta.

Não tardou para o casal ser visitado pelo chefe da PIDE da região na própria casa. “Houve um dia que cheguei a casa e tinha a casa cercada de homens e um deles, tinha uns bigodes muito grandes, apresentou-se como inspetor da PIDE e basicamente mandou-me estar calado. E disse algo como ‘porque nós temos a pistola na mão e você o cassetete’, para dizer que o poder estava do lado deles”, conta.

Este episódio dá-se em 1973, um ano antes do 25 de Abril, e apesar de não ter sido preso, José começou a perceber que estaria cada vez mais “encurralado” e que a sua liberdade de expressão seria muito condicionada.

“Estava a acontecer algo em que eu acreditava”

E na noite de 24 de Abril de 1974 começa um movimento revolucionário que lhes mudaria para sempre o futuro. Na Rádio Clube Português, pelas 22h55, o locutor João Paulo Diniz dá início ao primeiro passo da revolução, lançando a primeira senha, a música insuspeita que tinha vencido o Festival da Canção, “E Depois do Adeus” de Paulo de Carvalho.

E se pensarmos no acontecimento como um filme orquestrado podemos imaginar que enquanto a voz de Paulo de Carvalho soava, nos diferentes quartéis os militares envolvidos na operação preparavam-se numa correria controlada para tomar os seus postos e colocar os carros para a saída que só aconteceria meia hora depois.

É da emissão da Rádio Renascença que sai a segunda senha, a música “Grândola Vila Morena” de José Afonso, que daria a ordem para o início das operações com os militares a irem para as ruas. O 25 de Abril estava a acontecer.

Matos Gomes escreveu

José e Constança lembram-se de ouvir a notícia de um golpe de Estado em Portugal, pela rádio. “Para mim foi um alívio”, conta Saraiva.

Na altura o casal, já com dois filhos, achou que a vida iria continuar com naturalidade, o país ia conseguir finalmente a independência e não temeram, ao contrário de muitos colonos, o seu destino. Sair de Angola não era, ainda, uma opção.

Em Lourenço Marques, a notícia chega já atrasada a Nazaré. “Eu creio que só soube no dia 26, mas foi uma grande alegria. Foi o melhor dia da minha vida, porque eu voltaria a poder ver o meu irmão, que estava como refugiado político na Suécia, e estava a acontecer algo em que eu acreditava”, conta.

O entusiasmo e euforia de Nazaré eram grandes, mas os pais pediam alguma contenção uma vez que a Direção Geral de Segurança (DGS, ex. PIDE) ainda continuava em território moçambicano, mesmo que de forma disfarçada.

O processo de descolonização não foi instantâneo e não havia uma previsão cronológica para a independência das colónias, mas o novo poder político em Portugal procurava a transição de governação de forma mais pacífica possível.

Em Moçambique, depois de vários episódios e acontecimentos catastróficos, dá-se a tomada de posse do Governo de Transição. A 21 de setembro de 1974, Joaquim Chissano toma posse como primeiro-ministro. O nome foi indicado pela FRELIMO.

As tropas portuguesas começaram a ser retiradas – de forma progressiva – de solo moçambicano e os quadros superiores da administração pública foram substituídos por elementos da FRELIMO. “Os negros lá tinham muita esperança e depois as coisas começaram a cair”, relembra Nazaré.

"Só que eu não podia dizer que não concordava com o sistema"

 

A saída de pessoal qualificado, na maioria colonos, levou a situações complicadas no funcionamento dos serviços. “Deixou de haver, por exemplo, mecânicos, técnicos de ar condicionado, de elevadores e as coisas começam a parar”, exemplifica.

Nazaré, na época, estava a trabalhar na empresa DETA – Direção de Exploração dos Transportes Aéreos dos Caminhos de Ferro de Moçambique -, a estudar Direito na faculdade e a fazer trabalho comunitário na Cadeia da Machava, antiga prisão da PIDE, e foi nessa realidade que teve noção da desorganização que estava aquele país. “Um dia o diretor da prisão chama-me à sua casa, porque me queria pedir lições de francês, e eu começo a falar com ele sobre várias situações da prisão e ele diz-me ‘camarada Nazaré, eu estava no mato, mandaram-me para aqui’. E eu percebi que ele não tinha a mínima competência para o que estava a fazer. Tudo isto fazia com que as organizações que já tinham problemas ainda se desestruturassem mais”, diz.

A política do medo e da violência começa a afastar as pessoas do sonho que tinham tido para o país, tal como para Nazaré. “O meu professor de Direito Constitucional, Costa Rosa, e outro juiz fizeram a lei da nacionalidade, mas levaram-na para a faculdade para discutir. E o fulano do grupo dinamizador fez queixa de nós, porque não tínhamos de discutir nada e só tínhamos de aceitar”, conta.

A jovem, por não concordar com o que estava instituído, decidiu desistir da faculdade e dos cargos que lhe tinham sido atribuídos e ficar apenas a trabalhar na DETA. “Aleguei que não conseguia conciliar tudo, mas era mentira. Só que eu não podia dizer que não concordava com o sistema, se não era uma reacionária e os reacionários iam presos”, conta.

Nazaré com uma amiga na marginal
Nazaré com uma amiga na marginal de Lourenço Marques nos anos 70 créditos: DR

Pouco tempo depois da Revolução dos Cravos, o irmão de Nazaré tinha visitado a família em Lourenço Marques, mas tinha recusado ficar porque já sabia os planos da FRELIMO. “Na altura fiquei muito chateada com ele, porque acreditei que ia ficar tudo bem. Eu esperava que com a independência viesse a democracia, mas não veio. A opressão passou da PIDE para outro poder. E ficou tudo pior porque não havia uma organização”, lamenta.

O país estava assim entregue a um único partido, a FRELIMO, marginalizando os partidos políticos que tinham surgido e ignorando a democracia que se pretendia para um país livre, o que gerou muita contestação.

“A UNITA ocupou-lhe a casa e correu com eles”

Em Angola a situação da independência era mais complexa, pois existiam três movimentos de libertação — MPLA, FNLA e UNITA — em guerrilha entre si. É num contexto de muita turbulência, conflito e violência no país que, a 15 de janeiro de 1975, assina-se  o Acordo de Alvor, no Algarve, entre o Estado português e os três movimentos pela independência de Angola.

No documento reconheciam-se estes movimentos como representantes legítimos do Governo do novo país, bem como o direito à independência, proclamada a 11 de novembro desse ano.

Num manifesto otimista pretendia-se que houvesse cooperação e paz entre todos no processo, mas a realidade mostrou ser bem diferente.  “Desde que se dá o 25 de Abril e os movimentos de libertação entram em Angola, todos os dias havia um episódio qualquer”, conta Saraiva.

As ruas de Angola transformam-se num autêntico caos em que o cenário de violência é uma constante com roubos, agressões e apropriação aleatória de bens e propriedades por parte dos membros dos diferentes movimentos.

Em meado de julho de 1975, a UNITA ocupa a casa do casal José e Constança. “Eu estava com os meus filhos em casa, à tarde, e aparecem uns homens de arma em punho e mandam-nos embora. Como a casa era do Estado e nós portugueses, acharam que aquilo lhes pertencia e queriam era que os portugueses se fossem todos embora. Eu peguei em meia dúzia de peças de roupa dos miúdos e fui para uma loja que tínhamos”. Constança não ousou sequer a oferecer resistência.

Por volta das dez da noite, quando Saraiva chega é abordado pela vizinha a contar o sucedido. “Ela vem a correr ao quintal diz ‘ Sô Saraiva, não entre na sua casa. A sua esposa e os meninos estão lá em cima com o meu cunhado porque a UNITA ocupou-lhe a casa e correu com eles”, lembra.

Nessa noite, e ainda durante uns dias, dormiram no chão da loja e com a certeza que estava na hora de deixar aquele país.

Constança com o filho Bruno
Constança com o filho mais novo, Bruno, ainda em Angola créditos: DR

Na memória também ficam as inúmeras viagens pelas estradas dominadas por guerrilheiros em que mandavam parar os carros. “Em cada vila ou cidade havia um movimento diferente e passar naqueles controlos era um martírio, então tive de aprender com a vida e adotar uma estratégia. Comprava maços de tabaco e andava sempre com notas de 20. E mal me abordavam eu perguntava — Fuma? e dava-lhes um maço. Ou então dava-lhes uma nota. E tinha de ser assim!”, relembra José.

A Angola em que tinham vivido já não era a mesma, até em Freixiel, naquele que tinha sido o "cantinho do céu", já havia algum perigo e movimentos por perto, e por isso o casal decidiu sair do país e convencer os pais e familiares a fazer o mesmo.

Como Constança e Saraiva, havia milhares de famílias a quererem vir para Portugal e por isso estava a ser levada a cabo uma operação gigante que ficou conhecida como a Ponte Aérea.

A TAP operou centenas de voos, cerca de 900, num período de dois meses, entre Angola e Portugal, e contou ainda com a ajuda de outras operadoras estrangeiras que se ofereceram para entrar nesta mega-operação.

Nessa altura também foi criado o Instituto de Apoio ao Retorno de Nacionais (IARN) com o objetivo de dar apoio às pessoas que fugiam das ex-colónias. Entre os diversos apoios, o IARN disponibilizava alojamento a famílias desalojadas, ajudava na aquisição de bens, como roupas e sapatos, comida e dava apoio financeiro na atribuição subsídios emergentes ou empréstimos para reintegração na sociedade.

Saraiva foi ao aeroporto de Nova Lisboa, onde estava montada a receção do IARN e encontrou um ex-colega que o ajudou na marcação das viagens, contudo um acidente com o filho mais novo ditou o regresso mais cedo. “Ele gatinhava e jogou a mão ao prato da sopa e queimou-se, na cara, ombro e braço. Fomos logo ao hospital, eles lá trataram, mas aquilo ficou com muito mau aspeto”, conta Constança.

“Eu voltei ao aeroporto, expliquei a situação e aconselharam-nos a estarmos nesse mesmo dia às sete da noite no aeroporto para ver se conseguíamos vaga”, explica José.

O cenário no aeroporto de Nova Lisboa era igual a tantos outros aeroportos angolanos: milhares de famílias deitadas no chão à espera da sua vez para um voo. Também o casal e os dois filhos, Anabela com dois anos e Bruno com onze meses, dormiram essa noite no chão, até ouvirem nos altifalantes a confirmação do seu voo com partida às 5h da manhã.

Não havia malas, tinham sido roubadas há quinze dias num dos assaltos na estrada, e por isso pouca coisa trouxeram se não os bens essenciais para os dois filhos como fraldas, biberões e latas de leite.

“Costumo dizer que já deixei o cadáver só com ossos, porque a carne já lhe faltava”

 

Em Moçambique, a decisão de deixar o país tomou a mente de Nazaré num episódio que diz ter sido decisivo. “Eu estava na DETA e trabalhava no aeroporto e há um dia em que venho do trabalho e passo na Avenida de Angola, onde estava a sede da FRELIMO. Cada vez que eles tivessem a içar ou arrear a bandeira, os carros tinham de parar e as pessoas tinham de sair do carro. Isso aconteceu, vinha com duas colegas minhas, e saímos do carro. Havia um soldado que estava só a olhar para mim e mal acaba aquela manobra da bandeira vem direito a mim e começa aos gritos a mandar-me lá para dentro - do edifício da sede – porque eu não estava em sentido”, conta.

O sentimento de injustiça de Nazaré foi tremendo. “Eu estava tão zangada com aquilo que contra-argumentei que nunca tinha andado na Mocidade Portuguesa, nem me tinham ensinado a estar em sentido perante uma bandeira, e portanto não tinha outra forma de estar”, relembra. Naquele momento, apesar do sentimento de injustiça, temeu por ser presa, bem como as suas colegas apavoradas no carro.

“Quando estacionei o carro à porta da loja dos meus pais ainda vinha com as pernas a tremer e disse aos meus pais ‘eu não quero ficar cá nem mais um dia’”, diz.

Ao contrário de Angola, em Moçambique não houve a Ponte Aérea, as pessoas iam pelos seus próprios meios e a maioria ainda conseguia levar alguns pertences, ainda que as autoridades moçambicanas limitassem o valor pecuniário por cidadão e os bens que podiam importar.

O tipo de contrato que Nazaré tinha com a empresa permitiu trazer mobílias e carro, e esse foi um dos bens que enviou antes de sair de Moçambique. “O meu pai estava difícil de convencer a vir, então eu convenci-o a ir antes de mim com a desculpa de levantar o carro”, conta. Um mês depois, em julho de 1977, vem a mãe de Nazaré.

Nazaré ficou a organizar a transferência das mobílias e dos caixotes com os seus pertences e a arranjar o barco de transporte. “As coisas eram despachadas para a alfândega e lá era tudo retirado, visto e revisto”, conta.

E com um grande sentimento de alívio e esperança, na noite de 6 de outubro de 1977 deixa Maputo com a certeza que aquela terra não era já a sua. “Quem veio em 75, logo a seguir à independência, ficou com a imagem do que era antes. Costumo dizer que já deixei o cadáver só com ossos, porque a carne já lhe faltava”, diz.

Lourenço Marques, atual Maputo
 

“Alguns mataram-se, porque não aguentaram”

Estima-se que cerca de 500 mil a 800 mil pessoas tenham regressado das antigas colónias, entre 1974 e 1979. Nem todas podiam ser chamadas de “retornados”, porque nunca cá tinham estado, mas foi esse o rótulo que ficou para sempre na história do nosso país.

Constança e Saraiva chegam a Lisboa no dia 19 de setembro de 1975. “A Constança foi logo a primeira a sair com o Bruno, para irem direitos ao Santa Maria e eu fiquei com a nossa filha. Fui buscar os sacos com os nossos pertences e fui ao IARN recolher os cinco contos que davam para mim e para a minha mulher”, conta.

Como Saraiva, estavam outros milhares no aeroporto com a mesma rotina, uns já com destino traçado, outros sem saberem para onde ir e sem ninguém à espera. A equipa de acolhimento do IARN encarregava-se de encaminhar as pessoas para pensões, hotéis, parques de campismo ou qualquer instalação passível de servir de alojamento; bem como atribuir um subsídio por pessoa adulta.

Os primeiros quinze dias do casal foram passados na Pensão Pátria, na Duque de Ávila, que apesar de ser de familiares do pai de José, tinham acordos com o IARN . “Começámos a vida com 10.000 escudos, com dois filhos no colo e sem nada. Era uma preocupação constante sobre o dia de amanhã”, relembra Constança.

Os meses seguintes foram de muita incerteza. José Saraiva era funcionário público em Angola , pertencia ao Quadro Geral de Adidos e ficou à espera de uma colocação. Nesse tempo e para estarem mais próximos da família, o casal foi transferido para o Algarve, no hotel Eva. “Eu nunca me senti bem lá, porque era uma situação insustentável. Aquilo não era vida, queria era arranjar trabalho”, explica Saraiva.

À época muitos retornados foram olhados de lado, no Verão Quente de 1975 o país viveu um período conturbado marcado pela divisão das forças políticas e um certo desgoverno. Para muitos, os retornados eram olhados como privilegiados e quase “responsáveis” pela morte de tantos portugueses na guerra colonial, para outros representavam uma ameaça ao mercado de trabalho e da habitação. “Sentíamos alguns olhares de desconfiança”, concorda Saraiva.

“Eu perdi o meu emprego, perdi a minha casa, perdi as mobílias, perdi os bens que meus pais tinham, mas houve pessoas que perderam milhões, milhões e milhões e vieram para cá na miséria. Alguns mataram-se, porque não aguentaram”, diz Saraiva que nunca foi contra a Revolução do 25 de Abril mas tece duras críticas ao processo de descolonização e ao processo de negociações do governo português na altura. “Aquilo foi tudo muito mal conduzido”, conclui.

"Muitos vieram injustiçados e assim ficaram para sempre"

Quando Nazaré chegou a Lisboa, como os pais tinham vindo à frente, já muita coisa tinha sido tratada, como a receção dos seus bens e a casa. Ao contrário de muitos retornados, principalmente vindos de Angola, que vieram só com a roupa no corpo e sem dinheiro, Nazaré e a família conseguiram enviar dinheiro nos últimos meses, o que permitiu darem entrada para uma casa no Cacém. “Também tivemos a ajuda de uma tia para dar entrada para uma tabacaria, ali nos Anjos, e foi assim que começámos a vida. Eu trabalhei lá a vender revistas, tabaco e essas coisas com os meus pais”, explica Nazaré.

Lembra-se que nessa altura havia um jornal que se chamava O Retornado, que Nazaré proibiu o pai de vender. “Não me identificava nada com aquilo, eram só histórias de desgraçados. O ‘Retornado’ nunca se vendeu ali”, conta.

Nazaré nunca se resignou e, apesar de pertencer ao Quadro Geral de Adidos por ter sido funcionária pública, enquanto aguardava colocação trabalhou no que pôde, desde fazer inquéritos a ser operária numa fábrica de bolachas. Admite que a vida foi complicada para muitos, mas acredita que o espírito e a forma como as pessoas encararam a situação teve um peso maior que o seu destino. “Muitos vieram injustiçados e assim ficaram para sempre; outros que já tinham trabalhado para singrar, procuraram singrar novamente”, diz.

Nazaré 2
créditos: AP

Tanto o casal Constança e Saraiva, como Nazaré foram reconstruindo a sua vida aos poucos. Entre caixotes, sacos cheios de memórias e planos que ficaram perdidos num outro continente foram erguendo um novo caminho. Eram jovens e isso ajudou-os a abraçarem a vida que tinham ainda pela frente. Para trás ficaram as memórias de uma infância e adolescência felizes num país que não é o deles, não porque não morem lá, mas porque em nada têm que ver com o que viveram. “Nunca mais lá voltámos, porque sabíamos que já não era o mesmo e tínhamos receio da desilusão”, confessa Constança que já ouviu muitos relatos de amigos que foram e voltaram desapontados.

Nazaré voltou nos anos 90 a Maputo, foi em trabalho, mas também não gostou do que viu. “Eu olhei pela janela do avião e vi que à volta do aeroporto havia imensas palhotas, barracas”, relembra. A cidade que conhecera tinha agora outra configuração. “Eu deixei uma cidade com 30 anos e encontrei uma velha de 90. Já muito estragada”, brinca. Os lugares também são feitos de pessoas e as pessoas que lá estão já não são as mesmas.

A Revolução do 25 de Abril ditou-lhes outro destino, bem diferente do que aquele que alguma vez sonharam, mas nunca o puseram em causa. “O 25 de Abril foi muito importante para Portugal, para haver liberdade. Claro que para nós lá a mudança foi muito grande, mas talvez seja do nosso feitio, talvez seja de nós, ultrapassámos tudo e aceitámos a situação. Mas sei que há pessoas da nossa geração ainda muito revoltadas com o que aconteceu”, diz Constança.

José Saraiva  reconhece que para algumas famílias, com situações dramáticas, o 25 de Abril e a independência das ex-colónias será sempre uma pedra no sapato, e teme os novos discursos políticos. " Eu sei que há pessoas que vão ficar marcadas para a vida. Eu era jovem e ultrapassei, mas o meu pai não e sofreu muito. A descolonização foi um processo muito complicado e há pessoas revoltadas ainda a quem estão agora a querer dar voz", lamenta.

Também Nazaré não renega a importância da data."Foi o melhor que aconteceu a Portugal. Portugal é um país muito diferente, muito mas mesmo muito melhor", diz.

E ao fim de 50 anos, será que se cumpriu Abril? "Cumpre-se Abril todos os dias a partir da maior conquista - a Liberdade! Há muito para continuar a fazer, não há soluções mágicas e mentalidades não se mudam por decreto, mas temos que continuar a lutar", defende Nazaré.